O Estado de S. Paulo

Casamento às cegas

Pedro Fernando Nery pedrofnery@gmail.com DOUTOR EM ECONOMIA

Shayan xingou Ana de retardada e idiota. Foi por trás das câmeras, segundo ela expôs. “Você me chamou de porco”, retrucou o iraniano. Uma pena, porque Shay e Ana pareciam o casal mais simpático – talvez o Cameron e Lauren da versão brasileira. Estou falando, claro, de Casamento às Cegas.

No reality show da Netflix, inicialmente as pessoas se dividem em cabines para conversar com alguém do sexo oposto, que está em outra cabine atrás da parede. É assim, apenas conversando, que decidem se são feitos um para o outro – daí o título. Entre dezenas de participantes, alguns casais se formam. São os que toparam casar com alguém que nunca viram, apenas ouviram. Apaixonam-se por uma ideia.

Os que noivam podem se ver e passam a morar juntos – é nesta convivência que as projeções se desmancham. A decisão final deve ser feita em um altar, com os trajes devidos e na frente de família e amigos. Shay e Ana disseram não. Mas ressaltaram que viveram uma história de amor linda e avassaladora – nas cabines. Quando estavam divididos por uma parede.

Outros casais se entusiasmam nesses dias. “Esperei a vida toda por esse momento.”

“Eu demorei tanto pra te achar...” “Parece que a gente se conhece há milênios!”. O prazer na vergonha alheia deve explicar o sucesso com espectadores.

Alguns analistas indignados viram na suspensão do teto de gastos para pagar o Auxílio Brasil o fim do liberalismo do governo. Agora?

Lembrei da ingenuidade dos apaixonados que abraçam as paredes das cabines. “Ele falou que vai privatizar tudo!” “Nunca me conectei com alguém assim...” “Ele é tudo que eu sempre quis!”. Pérsio Arida ri no sofá.

Não é quebrar o teto que afasta esse governo do liberalismo. Ao contrário, um Auxílio Brasil robusto e permanente é uma medida bastante liberal. Não existe liberdade na miséria. E não há capacidade de escolher sem renda. Pensadores de épocas diferentes como John Stuart Mill, Isaiah Berlin e Amartya Sen fizeram belas análises sobre liberdade e pobreza.

A solução para o auxílio foi, sim, caótica. O que não é liberal são outros gastos, apropriações dos recursos da sociedade por quem detém temporariamente o poder. Assim como nunca foi liberal sabotar máscaras ou vacinação: não deve haver liberdade para infectar, como não há para matar ou roubar.

Antes do anúncio do auxílio, estrearam os últimos episódios. Ana estava brava com Shay na mesa do jantar, pela sua “imundície”. Já era um prenúncio.

“Você deixa um rastro de destruição por onde passa!” •

O que não é liberal são apropriações de recursos e sabotar máscaras ou vacinação

ECONOMIA

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2021-10-26T07:00:00.0000000Z

2021-10-26T07:00:00.0000000Z

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