O Estado de S. Paulo

Militares dão segundo golpe em dois anos no Sudão, agora sem apoio civil

Ignorando ameaças de isolamento internacional, general manda prender premiê e seus ministros, corta internet, bloqueia acesso à capital e fecha aeroporto de Cartum

O Sudão acordou ontem com uma sensação de “déjà vu”. Primeiro, veio a notícia de que os militares derrubaram o governo, colocaram na cadeia o premiê, Abdalla Hamdok, e vários ministros. Em seguida, a internet foi cortada, as pontes que dão acesso à capital Cartum foram bloqueadas e o aeroporto foi fechado. Pela segunda vez em dois anos, os sudaneses testemunhavam um golpe de Estado – mas desta vez sem a presença de civis.

“O que está acontecendo no Sudão é um golpe militar”, disse o ministro da Justiça, Nasredeen Abdulbari. No início da tarde, manifestantes já haviam saído às ruas para protestar contra a ruptura institucional. Queimando pneus e gritando palavras de ordem, eles avançaram em direção ao quartel-general do Exército e foram recebidos à bala – 7 pessoas morreram e 140 ficaram feridas.

O roteiro foi parecido com o de 2019, quando manifestantes marcharam sobre as pontes que cruzam o Nilo para derrubar o ditador Omar Bashir, um déspota que governou o Sudão por 30 anos, acusado pelo Tribunal Penal Internacional de genocídio e crimes de guerra em Darfur, no oeste do país.

No lugar da ditadura surgiu um arranjo político, entre os líderes da manifestação e o comando militar, que executou o golpe. Hamdok, um economista com doutorado na Inglaterra, se tornou premiê. Mas quem mandava mesmo era o general Abdel-fattah Burhan, que deveria entregar o poder a um civil ainda este ano e marcar eleições para 2022.

Em vez disso, o general Burhan seguiu a cartilha do ditador africano dos anos 70, dando um segundo golpe de Estado que pode enterrar a recémnascida experiência democrática do Sudão, a terceira desde a independência sudanesa do Reino Unido, em 1956.

Em um discurso transmitido em cadeia nacional, Burhan anunciou a dissolução do governo e declarou estado de emergência. O general alegou que o Exército foi obrigado a agir em razão de disputas entre os civis. Ele prometeu nomear um gabinete de tecnocratas e realizar eleições, mas só em 2023.

Os sudaneses já estão acostumados com o fracasso das revoluções democráticas. Em 1958, um golpe militar excluiu os civis do governo pela primeira vez. Em 1964, uma revolta popular colocou fim à ditadura dos generais e instalou um breve regime parlamentar, que durou apenas quatro anos.

Mais tarde, por duas vezes, em 1969 e em 1985, os tanques voltaram às ruas de Cartum, com o generalato promovendo um revezamento de ditaduras até 1989, quando Bashir entrou em cena para impor, pelas três décadas seguintes, a estabilidade política na base do terror.

O golpe de ontem ocorre poucos dias depois do enviado especial dos EUA à região, Jeffrey Feltman, reunir-se com líderes militares do Sudão e advertir que o apoio americano estava condicionado à transição para o regime civil. Ontem, o chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell, também sinalizou com o isolamento diplomático do país. “A UE pede a retomada do processo de transição”, disse.

Agora, Burhan tem de desarmar uma bomba-relógio. O conflito civil na vizinha Etiópia ameaça ultrapassar as fronteiras do Sudão – recentemente, escaramuças de fronteira quase provocaram um conflito entre os dois países. Internamente, o país está a ponto de implodir. No campo, 430 mil pessoas foram desalojadas este ano por conflitos fundiários entre agricultores e pecuaristas. E nas cidades, os protestos devem ampliar a pressão sobre os militares.

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2021-10-26T07:00:00.0000000Z

2021-10-26T07:00:00.0000000Z

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