O Estado de S. Paulo

Com força no YouTube, lo-fi hip-hop se torna ‘companheiro’ na pandemia

Suave na nave. Carregado de batidas cadenciadas e repetitivas, samples e ruídos, gênero vira ‘música de meditação’ das novas gerações, espalhando-se por canais no site de vídeos do Google; no Brasil, grandes clássicos do cancioneiro nacional ganham roupag

Giovanna Wolf Bruno Romani

“Não teria terminado minha tese de doutorado se não fosse a menininha do lo-fi no YouTube”, conta a advogada Bianca Kremer, 32. A “menininha” a que ela se refere é uma ilustração famosa na internet, que virou marca registrada do canal Lofi Girl, que tem mais de 9 milhões de inscritos no YouTube. Já “lo-fi” diz respeito ao gênero musical “lo-fi hip-hop”, que ganhou status de “música de meditação” entre os millennials na pandemia. Quase sempre instrumental e com batidas cadenciadas e repetitivas, o estilo tem se espalhado pelo site de vídeos do Google como instrumento de concentração para estudo e trabalho.

Dados todos os desafios de foco impostos pelo trabalho remoto, o lo-fi virou a trilha sonora oficial da quarentena de muita gente. “Você entra em um universo paralelo. Num ambiente barulhento como o home office, é uma forma de estimular a imersão”, diz a advogada, que passou o confinamento com a desagradável companhia de um prédio em obras ao lado de sua casa, no Rio de Janeiro.

Embora o lo-fi exista no Spotify e em outros serviços de música, o YouTube era o terreno perfeito para que o gênero prosperasse. Por lá, canais transmitem playlists ao vivo 24 horas por dia, algo parecido com o que fazem as rádios tradicionais. O potencial de transmissão infinita não exige que o ouvinte escolha o que escutar (e ele nunca será interrompido pelo fim da playlist, como ocorre no Spotify). É ideal para quem quer colocar algum tipo de som e se concentrar.

Ao mesmo tempo, os canais permitem a sensação de companhia, algo raro em tempos de home office. “As rádios ao vivo dão a sensação de que você não está estudando sozinho. Criou-se um senso de comunidade”, afirma Bruno Telloli, gerente de cultura e tendências do YouTube Brasil.

Criado em 2017 ainda sob o nome ChilledCow, o principal ícone do gênero no YouTube é o canal francês Lofi Girl. Segundo a plataforma de monitoramento de audiência digital SocialBlade, a página teve um boom de 340 mil novos inscritos em março de 2020 – antes da pandemia, o canal registrava um crescimento médio de 160 mil inscritos por mês. Hoje, todos os dias, há cerca de 40 mil usuários online na rádio.

Som. Um dos criadores do lo-fi é o produtor japonês Nujabes – além dele, o rapper americano J Dilla é um dos nomes fundamentais do gênero. Morto em 2010, Nujabes costumava samplear peças de som de jazz e soul, o que culminou em pequenos trechos instrumentais tocados em repetição, acompanhados de batidas eletrônicas. Isso abriu as portas para as propriedades relaxantes do som.

“A constância da batida é o que causa essa sensação. Nunca tem algo na música que você não espera”, conta a designer Izadora Duarte, 20, de Aracati (CE). A impressão dela, ouvinte desde 2019, encontra ecos no que dizem estudiosos do estilo.

“O lo-fi não tem variação dinâmica, tensão e nem acordes sujos”, diz Marcelo Bergamin Conter, professor de produção fonográfica do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS). “Parece uma resposta à precarização que estamos vivendo no trabalho e no estudo.”

Além das características musicais, o lo-fi carrega outras propriedades sonoras “relaxantes”. Músicas levam propositalmente chiados, ruídos e outras imperfeições sônicas – a maioria característica de formatos analógicos como fita K7 e disco de vinil. “Esses sons trazem certo conforto. É como ligar um ventilador na hora de dormir para que o ruído encubra o barulho da rua”, diz Conter.

Zeca Viana, doutorando em sociologia da música pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), lembra também que esses elementos sonoros trazem sensação de nostalgia, o que também ajuda a colocar o ouvinte num lugar de conforto e proteção. “O lo-fi carrega uma ideia de nostalgia daquilo que não foi vivido. Funciona para quem está lidando com isolamento ou outra pressão”.

Suco de Brasil. No Brasil, essa nostalgia ressuscitou uma nova geração de lendas da música brasileira: alguns canais fazem remixes ao estilo lo-fi hip-hop para grandes clássicos do cancioneiro nacional. Vozes de Tim Maia, Belchior e Rick & Renner são abraçadas pelas batidas e efeitos oníricos do estilo. Um dos principais nomes do lo-fi no País é o gaúcho João Dutra, 26, que tem como hit o vídeo “Lofi Para Webchurrasco”. Lançado em agosto de 2020, ele reúne uma hora de remixes de sons nacionais e tem mais de 1 milhão de visualizações. “Criei o canal em janeiro de 2019. Eu tinha mil inscritos, mas entre março e maio do ano passado teve um boom”, conta o jovem de Porto Alegre, profissional da tecnologia da informação – trabalhando de casa, ele termina o expediente e parte para os remixes. O canal Jdutra tem hoje 74,3 mil inscritos. “Misturar música brasileira traz um fator surpresa. São músicas complexas harmonicamente, com detalhes que às vezes passam despercebidos. Dá muito certo quando juntamos com a batida eletrônica”, diz ele. É o caminho ideal para apresentar grandes nomes à nova geração. “É uma forma de ressignificar a música brasileira e permitir que uma nova geração busque identidade”, lembra Viana. Nada mal para um gênero que nasceu para tocar em segundo plano, sem intenção de atrapalhar.

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2021-09-26T07:00:00.0000000Z

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