O Estado de S. Paulo

Uma crise chinesa

LOURIVAL SANT’ANNA EMAIL: CARTA@LOURIVALSANTANNA.COM LOURIVAL SANT’ANNA ESCREVE AOS DOMINGOS

Acrise da incorporadora Evergrande, que sacudiu o mercado de ações, abre novo capítulo na “maior reversão de rumo da economia chinesa desde que o país se abriu para o mundo e criou sua versão de capitalismo de Estado, nos anos 80”, conforme escrevi aqui no dia 1.º de agosto. Desta vez, o choque não foi deflagrado pelas agências reguladoras, mas as suas causas são as mesmas: a elasticidade na atuação dos conglomerados chineses.

A Evergrande é uma das maiores empresas do setor imobiliário, que, somado aos segmentos que orbitam a seu redor, responde por 30% do PIB chinês. Uma dívida de US$ 83,5 milhões venceu na sexta-feira sem que fosse paga. A empresa tem um período de graça de 30 dias antes de se tornar oficialmente inadimplente. Mas esse valor é uma pequena ponta do iceberg.

A incorporadora acumula dívidas de US$ 300 bilhões, o que a torna a mais exposta financeiramente do setor. E tem alertado há semanas os credores de problemas de fluxo de caixa. O Banco Popular da China (central) injetou US$ 71 bilhões na semana que passou no mercado financeiro. Mas ainda não está claro se o governo chinês pretende salvar a empresa ou se vai continuar apenas apoiando os bancos e demais credores, para evitar uma crise sistêmica, como a desencadeada pela quebra do Lehman Brothers nos EUA, em 2008.

Injetar dinheiro público numa empresa conhecida no mercado como “buraco negro”, tanto pela falta de transparência de seus negócios quanto pelo saco sem fundo de suas dívidas, contradiria tudo o que o governo chinês tem feito há quase um ano. No dia 3 de novembro, a Comissão de Valores Mobiliários cancelou uma oferta pública inicial de ações do Grupo Ant, filiado ao gigante do varejo Alibaba.

De lá para cá, as agências reguladoras multaram o Alibaba, em US$ 2,8 bilhões; removeram a Didi (equivalente chinês ao Uber) das lojas de aplicativos; retiraram os direitos de exclusividade sobre músicas das plataformas da Tencent, dona do aplicativo de mensagens WeChat; e proibiram os programas de reforço escolar de dar lucro. As justificativas foram a suposta violação de regras concorrenciais, a coleta irregular de dados dos usuários e a captura do ensino pelo capitalismo. A motivação subjacente é clara: a concentração de riquezas e as informações sobre os cidadãos reunidas por essas empresas passaram a ser vistas como ameaça pelo Partido Comunista Chinês.

Como antecipei aqui quase dois meses atrás, os analistas previam que os próximos segmentos no radar dos reguladores eram os de videogames, imóveis, saúde e entregas em domicílio. Depois disso, as autoridades restringiram o tempo de uso dos videogames. Antes os menores de 18 anos podiam jogar durante 90 minutos por dia, durante a semana, e 3 horas por dia, nos fins de semana. Agora, não podem mais jogar de segunda à quinta-feira, e só podem por uma hora, das 20 horas às 21 horas, às sextas-feiras, fins de semana e feriados.

Agora pode ser a vez do mercado imobiliário. A Evergrande tem as características tentaculares que explicam o crescimento dos conglomerados chineses, que sempre se beneficiaram da complacência regulatória na China, em comparação com os concorrentes dos países avançados.

Além do setor imobiliário, o grupo investe em veículos elétricos, em parques temáticos com centros comerciais, e no time de futebol Guangzhou FC, que está construindo o maior estádio do mundo, orçado em US$ 1,7 bilhão. O clube já pagou ao jogador Darío Conca o terceiro maior salário do futebol mundial, emprega hoje cinco brasileiros e é vicecampeão chinês.

Essa dispersão em múltiplos segmentos marca os grandes grupos da China, na fase de industrialização. Algo semelhante se deu no Japão e na Coreia do Sul. Com a diferença de que esses países são democracias liberais e evoluíram para uma interferência menor do Estado na economia. O caminho chinês ainda não está mapeado: desde 1978, eles têm “cruzado o rio sentindo as pedras”, no dizer do líder reformista Deng Xiaoping.

A Evergrande tem os traços que explicam o crescimento dos conglomerados chineses

É COLUNISTA DO ESTADÃO E ANALISTA DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS

Internacional

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2021-09-26T07:00:00.0000000Z

2021-09-26T07:00:00.0000000Z

https://digital.estadao.com.br/article/281857236687054

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