O Estado de S. Paulo

PÃO QUE ALIMENTA E UNE UMA COMUNIDADE

Após um vídeo feito pelos netos, Vovó Tutu pôde ampliar sua fabricação do alimento que distribui aos necessitados

Gilberto Amendola

Vovó Tutu faz e distribui, diariamente, 1,7 mil pães e 300 litros de chá na Brasilândia.

Com um celular na mão, Thalys, então com 8 anos, subiu em uma mesa e começou a filmar a vovó batendo a massa do pão. Como um diretor de cinema, explicou o que ela precisava fazer e falar para aparecer bem no vídeo. Depois, o menino levou o material para um expert em edição: o irmão mais velho, Mayan, que só tinha 12 anos. Postada nas redes sociais, a produção dos netinhos mudou a vida de Maria Paulina, de 69 anos, mais conhecida como Vovó Tutu.

Foi por meio de um vídeo despretensioso que o trabalho social da Vovó Tutu ficou conhecido, ganhou força na Brasilândia (na zona norte) e arregimentou fãs e colaboradores. Agora, com uma banquinha armada na porta da própria casa, Tutu organiza a distribuição diária de cerca de 1.700 pães e 300 litros de chá para uma comunidade carente. Um verdadeiro alívio em tempos pandêmicos.

Mas vamos retroceder o vídeo da vida da vovó quase até o início. Filha de uma empregada doméstica e de um lavador de carros, Maria Paulina ganhou o apelido do irmão mais velho. Da época, guarda a recordação dos dias em que esperava na fila da sopa por uma oportunidade de se alimentar. Além disso, ela tem outras memórias ainda mais marcantes: como a de um pai instável e, por vezes, violento. “Para me proteger da truculência paterna, minha mãe me internou, como órfã, em uma instituição de freiras, a Casa da Divina Providência Madre Teresa Michel, na Mooca. Fiquei lá dos 7 aos 14 anos”, conta.

Segundo Tutu, foi na convivência com as freiras que ela começou a ter exemplos de doação e caridade. “Às vezes, saíamos com elas para pedir doações. Eu sentia muita admiração por aquilo”, disse. Quando deixou a instituição, levou com ela uma irresistível vocação para ajudar o próximo.

Longe das freiras, ela conseguiu um emprego no Hospital das Clínicas, onde trabalhou no departamento de limpeza. Lá, cansou de esbarrar com mães e crianças carentes e com fome. De alguma forma, enxergava-se naquelas pacientes, naquelas mulheres e seus bebês. “Eu ia até o refeitório e pedia um lanche, alguma coisa que tivesse sobrando para dar para aquelas mulheres. Se precisasse, eu pegava escondido mesmo”, revela ela.

No Hospital das Clínicas, trabalhou de 1984 até 1996. Tutu deixou o emprego para se dedicar à venda de marmitas, lanches e geladinhos. Na época, chegava a vender de 80 até 100 marmitex para seus ex-colegas de trabalho. Foi nesse período também que adotou sua primeira filha, a Lurdes.

Lurdes tinha 17 anos e dormia nos bancos do Instituto da Criança (HC) quando foi adotada por Tutu. “Ela tinha se desentendido em casa. Não tinha onde morar. Não pensei duas vezes, levei-a para casa”, lembra Tutu. O gesto intempestivo de amor foi repetido por Tutu muitas vezes em sua vida. No total, ela “abraçou” quatro filhos adotivos, além dos seus seis biológicos – que hoje já lhe renderam 26 netos e 9 bisnetos.

Na Brasilândia, ela passou a fazer da própria vida um constante exercício de doação. Primeiro, começou a organizar festas de aniversário para crianças carentes no bairro. Depois, olhou para os idosos e também passou a inventar atividades para esse público. “Cheguei a montar um salão em cima de casa para tocar o meu trabalho voluntário”, relembra.

Nessa época, a mãe de Tutu começou a apresentar sinais graves de Alzheimer. Não demorou para que ela percebesse que a doença era um tabu na comunidade. “O desconhecimento da doença fazia com que muita gente tratasse os pais como se fossem loucos”, lembrou.

Claro, Tutu também fez desta experiência um caminho para chegar ao próximo. “Organizei palestras com especialistas na UBS do bairro sobre Alzheimer. Também criei uma espécie de apadrinhamento de idosos, com doação de fraldas, curativos e remédios”, comenta ainda.

Restaurante. Durante todo o tempo em que se dedicava à caridade, guardou um sonho: montar um restaurante. Então, no fim de 2019, um dos filhos alugou um espaço para que ela pudesse abrir o Cantinho da Vovó Tutu. “Compramos mobília, decoramos, deixamos tudo perfeito. Em oito meses, começamos a formar nossa clientela. Infelizmente, foi também quando chegou a pandemia”, observa.

Com muitas dívidas, Tutu e família não resistiram. O restaurante não chegou a completar um ano de vida. “Foi uma das piores experiências que eu tive, uma ilusão que terminou com muita dor e decepção.”

Sem restaurante e no meio da pandemia, Tutu se viu em casa. E o que ela fez para vencer a depressão de perder o restaurante e viver em isolamento? “Sabia que, com a pandemia, a fome ia bater na porta da periferia. Eu tinha de fazer alguma coisa”, afirma.

Tutu pegou um dinheirinho que tinha e começou a produzir pães para doação. No começo, entregava de 100 a 200 pães por dia – e para poucas famílias da vizinhança. Mas, em menos de dois meses, o número de moradores atrás dos pães da vovó cresceu exponencialmente. “Eu não ia dar conta. Eu batia aquela massa toda na mão. Eram 18 quilos de massa. Não ia conseguir manter aquela ajuda. Não tinha dinheiro nem condições físicas para atender muita gente”, relembra.

Foi exatamente naquele momento que os netinhos Thalys e Mayan entraram na história. Como contamos no começo desta reportagem, Thalys filmou a Vovó Tutu batendo a massa dos pães; e Mayan ficou responsável pela edição do vídeo. Com o vídeo nas redes sociais, a onda de solidariedade cresceu de forma espontânea.

“Comecei a receber doações de tudo quanto era lugar. As pessoas passavam na frente de casa e me deixavam muitas coisas. Logo, e com ajuda da família, passamos a produzir mais e a atender muito mais gente”, conta. A notícia chegou até o padre Fábio de Melo, que entrou em contato e começou a ajudá-la (organizou lives, pediu doações, etc.). Famosos, como o apresentador Luciano Huck, a chef Paola Carosella e a jornalista Ana Paula Padrão, também se solidarizaram e colaboraram com o projeto.

Hoje, a vovó atende, diariamente, cerca de 130 famílias. São dois pães por pessoa e mais o chazinho. “Conseguimos criar o Instituto Vovó Tutu. Agora, vamos buscar recursos para atender ainda mais famílias. A ideia é continuar o trabalho e montar uma escola de panificação e confeitaria para ensinar a mães e crianças algo que também pode gerar alguma renda”, explicou Tutu.

Vovó Tutu é incansável em sua missão. A rotina de produção de pães e distribuição parece preenchê-la de energia e amor. O segredo dela? “Eu me coloco no lugar das pessoas, me coloco no lugar de quem não tem um pão para dar para um filho”, explica.

“Comecei a receber doações de tudo quanto era lugar. As pessoas passavam na frente de casa e me deixavam muitas coisas. Logo, e com ajuda da família, passamos a produzir mais e a atender muito mais gente”

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2021-07-15T07:00:00.0000000Z

2021-07-15T07:00:00.0000000Z

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