O Estado de S. Paulo

‘Dois impeachments em 30 anos indicam que algo não está bem’

Para Moisés, a crise do sistema de representação provoca queda da qualidade da democracia brasileira

José Álvaro Moisés, cientista político / M.G.

• Qual o estado da democracia representativa hoje no Brasil?

Temos uma democracia eleitoral. Isso significa que ela engloba dois aspectos importantes: participação da maioria dos adultos e a possibilidade de contestação por meio da existência de partidos políticos e regras que permitam que o adversário de quem está no governo chegue ao poder.

• Qual nosso problema então?

O problema com a democracia brasileira não é se ela existe ou não, mas a sua qualidade. Isso tem relação com a crise do sistema de representação. Temos um conjunto de regras que, em vez de introduzir o eleitor no sistema político, desconecta representados e representantes. Isso transparece em pesquisas de opinião: as pessoas não se sentem representadas, não acreditam influir no sistema. O que diferencia a democracia das alternativas autoritárias é que nela as pessoas comuns são os soberanos; não o rei ou o secretário-geral do partido. Essa soberania é delegada por meio da representação, em primeiro lugar, aos partidos. Quando estes começam a falhar e já não recebem a delegação dos soberanos para passá-la ao presidente, você tem uma queda na qualidade da democracia. É que a soberania do eleitor não se expressa só no direito de votar, mas também por meio de instituições de mediação para propor ao sistema político temas que correspondam ao interesse do eleitor.

• Existe algum aspecto novo nessa crise após 2018?

Nos 30 anos que antecedem 2018, os militares haviam voltado à caserna e estavam subordinados a líderes eleitos, exercendo, dentro dos limites constitucionais, suas funções. Mas em 2018 houve uma quebra grave desse quadro: a intervenção do comandante do Exército, general Villas Bôas, antes do julgamento do habeas corpus de Lula. No Brasil, a democracia tem algumas condicionantes que ainda não estão resolvidas, e a questão militar é uma delas.

• O momento da América Latina, em que um maioria eleita no Chile para a Constituinte advoga o semi-presidencialismo, pode trazer mudanças ao Brasil?

Tem um aspecto da cultura política latino-americana que reforça muito a relação entre o líder e a massa. O que está ocorrendo no Chile e em outros países é uma mudança dessa cultura política, que justificou por mais de um século a manutenção de um sistema de governo (o presidencialismo) que tem poucas saídas para as crises graves. Crises sempre vão haver, são parte da dinâmica da democracia, mas precisamos ter saídas, mecanismos para retomar políticas de desenvolvimento do País. Desse ponto de vista, o que está acontecendo no Chile é um sinal da mudança da cultura política que, a meu juízo, vai ocorrer em outros países e, provavelmente, se o debate se estabelecer no Brasil, teremos chance de mudar. Dois impeachments de presidentes eleitos em 30 anos são uma indicação de que algo não está funcionando bem. O governo Bolsonaro mostra o excesso de poderes do presidente. Mesmo com as instituições de controle, não se normaliza a crise.

Política

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2021-06-14T07:00:00.0000000Z

2021-06-14T07:00:00.0000000Z

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