O Estado de S. Paulo

Um retrocesso inaceitável

À luz dos pífios resultados de décadas de atuação exclusiva de estatais no saneamento, é incompreensível que o resgate desse modelo seja hipótese cogitada pela equipe de campanha petista

Aaprovação do marco do saneamento básico proporcionou uma verdadeira revolução no setor. Com a ambiciosa meta de universalizar o acesso da população à água e esgoto até 2033, a proposta é a base legal e jurídica necessária para dar fim a uma histórica mazela social. De sua sanção, há menos de dois anos, até março, 16 leilões em todo o País garantiram mais de R$ 50 bilhões em investimentos, segundo a Associação e Sindicato das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon Sindcon). Há 28 licitações em fase de preparação. A estimativa é que sejam necessários R$ 900 bilhões para cumprir os objetivos traçados. Não há dúvida de que a materialização desses vultosos investimentos depende da estabilidade desta legislação – a não ser, é claro, entre os coordenadores do programa de governo do PT.

Como mostrou o Estadão, as empresas privadas estão receosas – com razão – a respeito da manutenção do marco caso o ex-presidente Lula da Silva se sagre vencedor da disputa eleitoral. Historicamente defensor de estatais, o PT não esclareceu se pretende retomar o famigerado modelo do contrato de programa, mecanismo vetado pela nova legislação e que garantiu a predominância de companhias estaduais no setor por décadas. Quando ele estava em vigor, os municípios não precisavam fazer leilões para contratar serviços de água e esgoto – bastava firmar acordos com as empresas estaduais sem estipular qualquer meta de cobertura. Nem o fato de a maioria das companhias não contar com caixa impedia prefeitos e governadores de fecharem arranjos políticos ao arrepio do interesse público e da Constituição, que impõe a realização de licitação.

O fracasso desse modelo fala por si só. Até 2020, a população com acesso ao abastecimento de água não passava de 84%; a parcela que contava com coleta de esgoto era de 55%; somente 51% do esgoto lançado era tratado. Segundo levantamento do Ministério da Economia, as 25 empresas públicas estaduais investiram R$ 7,4 bilhões por ano entre 2010 e 2017, em média, menos da metade dos R$ 20 bilhões mínimos estipulados pelo Plano Nacional de Saneamento Básico. Não foi por falta de recursos, uma vez que a maioria das companhias reajustou as tarifas acima da inflação ao longo desse período, mas sim uma escolha deliberada por priorizar gastos com pessoal em detrimento de investimentos.

À luz desses resultados, é incompreensível que o resgate desse modelo seja uma hipótese cogitada pela equipe de campanha petista. Representantes do partido se limitaram a dizer que o saneamento será alvo de “amplo plano de investimentos” que combine recursos públicos e privados. “Nós achamos que tem espaço para o público e para o privado. E nós queremos fazer essa parceria o mais forte possível para viabilizar a universalização”, disse a ex-ministra Miriam Belchior. Respostas a questionamentos sobre os contratos de programa foram evasivas – a campanha disse que outros detalhamentos serão fruto de “amplo debate” com a sociedade, entes federados e concessionárias privadas.

Ao contrário do que a equipe de campanha petista tentou sugerir, a revisão da legislação do saneamento não se deu de forma prematura ou açodada. Foram dois anos na Câmara e no Senado, com debates que começaram ainda em 2018. Ao longo desse período, duas medidas provisórias enviadas pelo Executivo perderam a validade, mas inspiraram a elaboração do projeto de lei finalmente aprovado. O aval à proposta não se deu por viés político, mas pelo reconhecimento, por parte do Legislativo, da limitada capacidade financeira do Estado e de suas empresas de garantir o avanço da infraestrutura, a preservação do meio ambiente e a oferta de condições dignas de vida para a maioria da população. As estatais tiveram décadas de exclusividade para mostrar sua competência. Ainda que não tenham se mostrado à altura do desafio, não foram proibidas de atuar na área. A diferença é que, com o novo marco, devem estar dispostas a entrar em uma disputa e vencer as ofertas de outras companhias.

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2022-08-27T07:00:00.0000000Z

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